Para Refletir

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Amar e fugir de quem se ama


- É estranho. Amar e fugir de quem se ama. Há uma dor que foge connosco, que não nos larga...
- E ainda trazes essa dor contigo..?
- A dor não. Mas trago os vestígios da dor. As cicatrizes. Naquela altura fugi – não vale a pena mentir, porque foi isso mesmo que eu fiz.
E sabes o que eu penso?, não acredito “no sempre feliz só porque se ama” Podemos amar felizes. Podemos amar infelizes.
- E o que é que tinha esse amor de especial....?
-Tinha-me. Era mesmo isso: tinha-me dentro dele. E isso não significava que eu fosse feliz, mas também não retirava um pingo de amor ao que eu sentia.
- Não é fácil de entender o que dizes....
- Pois não.
-...
- É como estar dentro de água num dia de verão quente. É bom, saboroso, mas depois vem o frio. Não deixas de estar dentro de água, estás, mas já é o frio que toma conta de ti. E repara: a água é a mesma. O calor é o mesmo. Mas tu não, tu mudaste, o teu corpo, a tua pele, sente a vontade de se aconchegar e afastar o frio que sente. E se não há nada que o aconchegue, que o aqueça, e que lhe dê o calor que ele precisa, só vais ter mais e mais frio em ti, percebes? Estás lá, sim, onde quiseste estar, naquela água que antes te chamou para a sua frescura, que antes te abriu os braços para te molhar a pele, mas há uma altura em que o prazer dessa água dá lugar a um incómodo; depois a uma moinha, cada vez mais forte, que já te arrepia, até se tornar uma dor vigorosa; e por fim um sentir insuportável que só te dá vontade de te abandonares a ti, de fugires para não sentires a sensibilidade atroz daquela dor que te punge.
O amor é igual: é bom, saboroso. Mergulhas no seu dentro e és feliz, sentes-te bem, mas depois vem o frio, a distância, o evitar de um abraço – primeiro -, depois é o beijo que nos desabita, e por fim já nem a pele nos conhece. Mas nós estamos lá, dentro do amor, dentro do frio que o amor nos provoca. E estamos lá – dentro do amor que nos rodeia por todos os lados. Mas amamos mesmo?, ou só estamos mergulhados no amor frio, solitário, e desabitado de corpos? É isso que nos dói. É sentir que estamos no amor, mas o amor já não quer estar connosco. Expulsa-nos, provoca-nos frios e arrepios, e dores que doem muito, e feridas profundas que levam tempo a sarar – se é que alguma vez nos saramos delas.
E depois? Depois vivemos com o permanente olhar para as cicatrizes que ficam. Podemos tapá-las com roupa, esquecê-las por uns tempos. Mas elas estão lá.
- Mas nem toda a gente sente isso...
- Claro que não. Há sempre gente que, num dado momento, vive no pico do amor, que acha que tudo são balelas, que nunca irá sentir nada disto, que é só para os outros, que jamais lhe acontecerá um tropeção de amor. É normal.
- O amor tem muito poder...
- O amor quando vem leva-nos para o seu melhor local. Faz-nos subir a montanha, mostra-nos as melhores paisagens. E é nessa altura, e com essa visão maravilhosa que o amor nos proporciona, que nos apaixonamos. É nessa altura que acreditamos que o amor será sempre um sol quente e reconfortante. É nessa altura que acreditamos – e não há ninguém neste mundo que já não tenha acreditado num amor desses -, que o amor nunca terá uma noite fria e gelada a viver em nós, que o amor nunca será uma madrugada solitária à espera de um corpo – da nossa outra metade de nós – que nos aqueça. É nessa altura que achamos que a nossa força nunca nos faltará para amar o resto da vida...é nessa altura que devemos viver o amor.

E só quem for parvo é que não aproveita o melhor que o amor tem: a felicidade.
  
Carlos Marcelino - Post Scriptum

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